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Enquanto bonecas “reborn” — bebês de silicone hiper-realistas — movimentam um mercado milionário entre adultos que desejam afeto sem compromisso, milhares de crianças reais seguem invisibilizadas nos abrigos do Brasil. Em sua maioria, são negras, têm mais de cinco anos e aguardam por um lar que, quase sempre, não chega.

Segundo o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), quase 70% das crianças disponíveis para adoção no Brasil são negras — pretas ou pardas. Apesar disso, o perfil mais desejado por quem pretende adotar segue sendo o mesmo: crianças brancas, meninas e com menos de dois anos.

Para compreender os efeitos do racismo nesse processo e o impacto direto na vida dessas crianças, a ANF conversou com Denise Ferreira, assistente social do Tribunal de Justiça da Bahia que é referência nacional em adoção étnico-racial.

“Adoção também precisa ser um ato de consciência racial”

“Mesmo com o dado alarmante de que a maioria das crianças disponíveis são negras, a discussão sobre a questão étnico-racial ainda é tímida”, afirma Denise. Com uma trajetória de décadas pesquisando o tema, ela desenvolveu o conceito de adoção étnico-racial, que evidencia os atravessamentos do racismo nesse processo.

Segundo a especialista, há um colorismo velado na escolha dos pretendentes: há maior aceitação por crianças pardas de traços considerados “suaves”, enquanto crianças pretas de pele retinta enfrentam rejeição explícita. “A desvantagem étnica se concretiza aí. Não somos neutros. Reproduzimos desigualdades”, pontua.

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Crianças negras esperam mais. E esperam sozinhas.

Questionada sobre por que crianças negras costumam ar mais tempo nos abrigos, Denise lembra que é preciso enxergar o racismo como estrutura. “A sociedade brasileira marginaliza corpos negros de forma tão profunda que lhes nega o direito básico ao pertencimento familiar. Seja na origem, seja na adoção”, explica.

Ela cita o abolicionista Luiz Gama: “Em nós, até a cor é um defeito, um vício imperdoável de origem”. A frase ecoa ainda hoje no sistema de justiça e na sociedade. “São questões que venho tratando em minhas pesquisas e também no capítulo que escrevi para o livro Direito Negrorreferenciado V, onde proponho uma epistemologia insurgente sobre a adoção étnico-racial.”

“Quem merece afeto?”

Denise reforça que o preconceito está no imaginário social: “Muitos pretendentes idealizam filhos brancos. Quando se deparam com a realidade — crianças negras, mais velhas, muitas vezes com irmãos — desistem”.

Ainda que alguns avanços tenham sido registrados quanto ao perfil étnico dos adotantes, ela afirma que são mudanças tímidas. “Combater esse cenário exige formação antirracista das equipes técnicas, conscientização dos pretendentes, valorização da infância negra e políticas públicas que garantam equidade.”

“Adotar criança negra é um ato de resistência”

“Adoção é, sim, um gesto de amor. Mas precisa ser também um gesto de consciência racial”, afirma Denise. Para ela, é preciso romper com a falsa ideia de que “cor não importa”. Importa, sim — e muito. “Porque o racismo estrutura as relações, as oportunidades e até os afetos. Adotar uma criança negra é escolher educá-la com orgulho da sua história, é protegê-la num país que insiste em rejeitá-la.”

Ela defende que todas as instituições — escolas, igrejas, mídia, justiça — assumam sua parte na transformação. “A infância negra precisa ser vista, cuidada e amada em sua plenitude.”

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Bonecas realistas, afetos seletivos

O fenômeno das bonecas “reborn” também entra na reflexão. Denise prefere chamá-las de bonecas realistas reborn, para evitar qualquer confusão com seres humanos. Ela alerta: “Há quem reivindique até direitos públicos para essas bonecas. Isso deve nos preocupar”.

Embora reconheça que possam ter uso terapêutico, ela critica quando a maternidade simbólica com bonecas ultraa o cuidado e escancara o despreparo para lidar com a vida real. “Enquanto bonecas são cuidadas, crianças reais seguem abandonadas. Isso revela o quanto nosso afeto é condicionado por padrões de aparência, controle e fantasia.”

Encerrar o silêncio. Assumir o compromisso.

A fala de Denise é contundente, mas necessária. O racismo ainda impede que milhares de crianças negras tenham o direito de viver em família. Adoção, para além do afeto, exige coragem. Coragem de romper com a fantasia da neutralidade e assumir que cor importa, sim. E que por isso amar uma criança negra é também lutar por ela.